Determinado a tirar um dinheiro extra para ajudar nas despesas diárias, Wilson de Pádua Pires, 54 anos, deixou em casa, no Gama, a família e a primeira neta, Isabella, de apenas dois meses, para trabalhar no feriado de 15 de novembro de 2012. Ele não estava escalado para o plantão, mas, apesar de preocupado com as contas, prometeu voltar a tempo de fazer a pequena dormir. Um telefonema, no entanto, mudou para sempre a rotina da família Pádua. A mulher, Antônia Sousa Pires, 50, revive a todo instante o momento em que soube da explosão de dois transformadores no subsolo do Ministério do Esporte, que tirou a vida do marido. “Às três horas da tarde daquele 15 de novembro, nossa vida parou”.
Não era o primeiro acidente sofrido pelo eletricitário: Antônia relembra de pelo menos duas quedas de poste. Em uma delas, o choque foi tão forte que deixou um buraco no braço dele. “Wilson sabia do risco, já tinha chegado em casa chorando muitas vezes por ter perdido algum amigo”, conta. De fato, o sofrimento da família de Wilson pode ser estendido a outros milhares de lares no país. A triste sina do eletricitário reflete uma realidade com que convivem, diariamente, os mais de 150 mil funcionários que trabalham no setor. Apenas em 2012, foram registrados 1.941 acidentes de trabalho e 67 casos fatais, conforme dados fornecidos ao Correio/Diario pela Fundação Coge.
Entre os afetados, a maior parte, cerca de 80%, não tem vínculo empregatício direto com as distribuidoras de energia. São terceirizados. No ano passado, 1.245 dos acidentes e 58 mortes dizem respeito a esses trabalhadores. Apesar de representar uma diminuição em relação a 2011, quando foram contabilizados 2,2 mil acidentes e 79 mortes, o número ainda é considerado alto, o que tem feito com que o Ministério Público do Trabalho (MPT) acompanhe de perto o setor.
No caso do marido de Antônia, Wilson era funcionário direto da Companhia Energética de Brasília (CEB). Naquele feriado, ele havia sido chamado, junto com o companheiro com quem atuou por 11 anos no ramo, José Pereira dos Santos Neto, 59, para um serviço de manutenção. O colega de trabalho conta que uma outra equipe era responsável pela manutenção. Ele e Wilson deveriam apenas religar os sistemas após o serviço realizado. Essa fase é chamada de “faseamento”, quando se confere se as fases dos circuitos estavam ligadas de forma correta. “Senão, a explosão acontece”, explica José.
“Tudo explodiu”
Segundo ele, os trabalhadores que já estavam no local afirmaram que apenas três pontos do circuito precisavam ser conferidos. “Mas não era verdade”, relembra Pereira. Após o almoço, ele, Wilson e dois brigadistas foram para o subsolo do ministério. “Fui para um lado, fechar a chave a óleo, e meu companheiro de trabalho, para o outro, para a máquina. Quando me virei, vi o Wilson puxar a alavanca e tudo explodiu”, relata.
Até esse momento, José conta que não havia feridos, mas o fogo tomava conta da sala e impedia o acesso à porta. Desesperados, correram para a parede contrária. O medo de que o transformador explodisse e derramasse litros de óleo na sala incendiada também os conteve. O sistema de incêndio e o extrator de fumaça não funcionaram. “Senti o ar acabando, tudo ficou escuro e percebi que morreria se ficasse ali. Olhei para o lado e não vi o Wilson. Achei que ele já tivesse saído”, explica. Munido de traje antichamas, José correu pela porta e saiu do local.
“Quando saí, vomitei uma gosma preta. Avistei os bombeiros descendo a escada e só tive tempo de gritar que meu amigo estava lá dentro. Pedi pelo amor de Deus para que o tirassem de lá”, relembra Pereira. Wilson foi retirado da sala com vida, mas morreu 40 minutos depois. Ele chegou a correr: no chão, após apagado o incêndio, ficou a marca do corpo do eletricitário, algumas moedas e o tíquete do ponto eletrônico mostravam que havia se distanciado da parede.
José teve todo o aparelho respiratório queimado, passou 17 dias na Unidade de Terapia Intensiva (UTI), sem comer, beber ou conseguir falar. Hoje, nove meses depois, além de conviver com as sequelas — um dano, provavelmente permanente, nas cordas vocais e refluxo — vive com a dor das lembranças do dia em que perdeu o colega. “Só Deus sabe o quanto eu sofri”, entristece-se. Ele voltou ao trabalho, mas prefere o serviço na fiação aérea e abandonou o trabalho no subterrâneo.
Casos subestimados
Para o Ministério Público do Trabalho, o número registrado pela Fundação Coge em relação às mortes e aos acidentes no setor elétrico é alarmante, mas pode estar subestimado. “Principalmente em relação aos acidentes. Se não há consequências mais graves, o incidente pode não ser relatado e não contar nas estatísticas”,
explica o procurador regional do trabalho José de Lima Ramos Pereira, coordenador nacional de combate às fraudes na relação trabalhista.
O gerente da Fundação, Cesar Viana, pontua que, historicamente, tem havido redução no número de casos — com exceção de 2011, quando foi registrado aumento —, mas, ainda assim, a frequência com que ocorrem é considerada significativa. “É claro que é muito. São vidas perdidas. Além disso, para cada uma dessas mortes ou afastamento, há um prejuízo enorme às empresas”, afirma. Somente em 2012, as perdas de pessoal — temporárias ou definitivas — causaram perdas de R$ 520 milhões ao setor. “Com esse dinheiro dava para construir muitas linhas de transmissão de energia ou até pequenas centrais hidrelétricas, caso os empresários investissem mais em segurança”, conclui.
Na avaliação do procurador do trabalho, o fato de a quantidade estar diminuindo não é animador considerando o número vultoso de casos. “Só vai ter uma melhora quando esses acidentes acabarem. Menos mortes não é algo bom: não morrem mais 100, mas morrem 50. Ainda é um absurdo. Não adianta dizer que a frequência está diminuindo para os pais, os filhos, a esposa de quem perdeu alguém”, argumenta Ramos. “As pessoas morrem e viram números estatísticos”, completa.
Apelo à Justiça
Para cada caso, como o de Wilson, cita o procurador do trabalho, uma família tenta se reestruturar após a perda. “Ele era nossa estrutura, nossa base. Ainda estamos perdidos”, afirma o filho mais velho do eletricitário morto, Rodrigo, 27 anos. “Tivemos que fazer uma adaptação forçada. Nós não decidíamos nada sem o aval dele, sem o conselho de pai”, completa Wilson Junior, 25, ladeado da irmã Jéssica, 22. Antônia, para sustentar a casa com os três filhos e a pequena Isabella — hoje, com quase um ano —, conta com a pensão do marido e com a ajuda do mais velho. Os outros dois ainda cursam a faculdade.
Um processo que corre na Justiça, impetrado pelo próprio Wilson quando ainda vivo, e que agora está nos trâmites finais, buscava uma aposentadoria especial para o eletricitário em razão da periculosidade da profissão. “A repercusão da morte do meu marido fez com que essa questão da aposentadoria especial fosse vista com olhos diferentes pela Justiça”, diz Antônia. A CEB custeou todo o tratamento e hospitalização de José Pereira e Wilson de Pádua.
Fonte: Diário de Pernambuco 29/08/2013
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